Resenha Filme: Picnic na Montanha Misteriosa

Elaine Timm
4 min readJan 14, 2021

“O que vemos e o que somos não é mais do que um sonho dentro de um sonho.” A citação de Edgar Allan Poe é a moldura que envolve as cenas de abertura deste clássico australiano rodado em 1975. A grandiosa escultura rochosa de Hanging Rock surge, desvanece e ressurge sob um manto de neblina em fluxo contínuo. Carregado de misticismo, o filme eleva seu significado através do tom onírico e cenas fragmentadas que levam à sensação de transe, contos de fada e reinos utópicos.

Adaptado da obra homônima de Joan Lindsay, o filme está mergulhado em mistério. A cena em que as garotas desaparecem na rocha é amplamente enigmática. A cinematografia etérea de Russell Boyd cria um ambiente lúdico, enquanto a trilha equilibra o onírico a uma ameaça invisível. As garotas entram em uma névoa sonolenta e vagam para o esquecimento. O sentido, ou a ausência dele, é sobrenatural, mas absolutamente encantador.

Repleto de ambiguidades e contrastes, a história parece querer mostrar uma certa conexão entre o Appleyard College e as rochas de Hanging Rock, bem como a relação das meninas com esses dois ambientes. Na escola, as adolescentes vivem em uma atmosfera de repressão, mesmo com paixões colegiais e hormonais em plena ebulição. O aprendizado categórico e a disciplina firme são oferecidos como substituto ao natural comportamento adolescente; na rocha existe uma força estranha que lhes permite o expressar com plenitude.

“Tudo começa e termina exatamente no momento e lugar certos”

Na aventura, apenas três jovens partem para o desconhecido e se deixam envolver pela atmosfera da montanha, enquanto a colega robusta e reclamona é deixada para trás — talvez ainda permanente nos confins da infância, não se permitiu ser levada a outros ciclos. O filme parece querer mostrar que a sexualidade reprimida das jovens estudantes estava, de algum modo, ligada ao seu desaparecimento, como se os seus estados emocionais se interligassem com a presença viva da montanha.

De um ponto de vista meramente simbólico, já que a obra é extremamente subjetiva, a escola seria um cárcere de desejos reprimidos enquanto a rocha representaria a libertação. Alguém que parece ter bebido muito dessa fonte foi Sophia Coppola, com seu As Virgens Suicidas, que parte de uma premissa parecida e está envolto no onírico mesclado a toques de sensualidade feminina e libido.

Para muitos dos personagens, a perda de Miranda (Anne-Louise Lambert), é o que mais se sente, devido à sua beleza e sua particularidade etérea, como se ela estivesse sempre conectada a algo intangível, mesmo antes de desaparecer na fenda rochosa. Uma das professoras declara misteriosamente que Miranda é um anjo de Botticelli. Alguém poderia sugerir que é meramente uma referência à sua beleza física, mas ela também remete à jovem como uma invenção da imaginação; Peter Weir faz essa conexão entre o comprovado e o imaginativo para criar a ambiguidade misteriosa como parte integrante do incompreensível suspense psicológico que envolve a trama.

Na missão de embalar uma obra com tons de inocência, horror e sensualidade, a trilha sonora não deixa nada a desejar. Embora delicada, também é etérea e intensamente sinistra. Juntamente com o uso de peças de Mozart, Beethoven e Bach, há uma pequena partitura composta por Bruce Smeaton. A flauta envolve, mas o piano é melancólico e oscilante, subindo e descendo conforme a ascensão das meninas.

No desfecho sem respostas abertas, o que fica evidente é que o filme é simplesmente impenetrável para o seu próprio bem narrativo. Assim como no livro de Joan Lindsay, Weir não deixou respostas concretas, permitindo ao espectador suas próprias interpretações.

Apesar da estranheza que possa causar esse mistério insolúvel, Picnic na Montanha Misteriosa é um filme único que todo cinéfilo deveria ver, ao menos uma vez. É provável que seja uma experiência polarizadora para aqueles que apreciam uma conclusão exata, mas os amantes do mistério, ambiguidade e finais abertos provavelmente ficarão satisfeitos. De qualquer forma, a obra permanece única e intangível, assim como sua jovem protagonista Miranda, adorável de se ver, difícil de compreender plenamente.

Texto publicado em http://www.clubedapoltrona.com.br/2018/08/15/descubra-um-classico-picnic-na-montanha/

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