Resenha Filme: Cría Cuervos

Elaine Timm
3 min readJan 16, 2021

“Parece mentira que existam recordações que tenham tanta força… tanta força”. A obra de Carlos Saura nos leva a um passeio pelas recordações de uma criança que tenta lidar com o inerente luto pela morte da mãe, elucidado através do universo infantil onde prevalecem as imagens dos rostos, expressões, situações, melancolia e aprendizagem — ou, para colocar tudo em uma palavra: intimidade. Assim, Cría Cuervos (título derivado do provérbio espanhol: “Cria corvos e eles te arrancarão os olhos”), conta a história da perda; da morte como um fantasma que não desaparece; do tempo como uma série de camadas através do qual se caminha, dia após dia sem poder escapar.

Uma jovem chamada Ana (Geraldine Chaplin) conta as lembranças que tem de sua mãe que morreu de câncer em tenra idade. O público recebe a impressão de que ela sente orgulho, devido ao seu potencial musical, pois passou a adolescência participando de concertos públicos, após a formatura escolar — em um desses shows que sua mãe conheceu seu pai. Nestes primeiros minutos das cenas de abertura, enquanto a câmera passa pelas fotografias da família, o som do piano ao fundo evoca um sentimento nostálgico e melancólico, e uma vibração que algo não está certo. O passado traumático chega à superfície; para Ana, este vem através da memória de sua mãe lidando com isso.

É interessante notar que Saura escolheu Geraldine Chaplin para interpretar tanto a Ana adulta — que narra o filme — , quanto a sua mãe, quando a própria está revisando sua vida em retrospecto. O diretor não usa flashbacks para indicar os diferentes tempos que mostram como o passado ainda pode influenciar o presente. Ele cria um estilo surrealista e uma aparência de fantasmas sem uma presença que assombra a jovem Ana (Ana Torrent).

E assim que Saura lida com o salto temporal, se é que ele existe, de forma tão sutil que é quase impossível distinguir. Os longos planos-sequência nos levam à explorar a residência escura, silenciosa e sombria, cheia de vida e de morte; um elemento essencial para a construção dramática da narrativa.

Como os dois tempos estão praticamente sobrepostos um ao outro, é fácil perceber os efeitos das atitudes da menina em sua versão adulta. Ao passo que a criança Ana cresceu com a liberdade de explorar a propriedade de seus pais, brincando ao ar livre, ela também teve uma infância bastante sombria, repleta de pensamentos sobre morte e suicídio. Esse é um tema recorrente nas obras de Saura: a forma como lidamos com a morte e com tudo aquilo que nos é desconhecido.

Além das brilhantes atuações, a trilha sonora dá ainda mais vida ao filme e a seus personagens. Enquanto a melancólica melodia tocada no piano nos faz viajar pelas memórias de Ana, uma grudenta canção chamada “Por qué te vás”, um grande sucesso espanhol da época, traduz a frustração da menina em não saber lidar com a dor pela perda de sua mãe. Sabemos que a música se trata de uma desilusão amorosa entre um casal, mas a criança associa, apenas, à lamentação por aquele que partiu.

Acredito que há duas formas diferentes de o público ler esse filme: Ana poderia estar se projetando vinte anos no futuro ou o filme inteiro poderia ser uma lembrança em um momento posterior, quando a Ana mais velha se parece com sua mãe. Talvez, sejam ambos os lados, mas acho que é justamente sobre isso que Saura quis gerar reflexão: a maneira como o passado, o futuro e o presente estão interconectados.

Nesse ínterim , Cría Cuervos é um clássico tocante sobre mulheres entre gerações, liberdade e repressão, vida e luto — não necessariamente sobre o trauma que é gerado após a morte de alguém próximo, mas sobre a invenção de um lugar qualquer para encasular essa perda; seja no tempo, na melancolia ou, quem sabe, no murmúrio de uma velha canção: “Hoy en mi ventana brilla el sol, mi corazón se pone triste contemplando la ciudad, por qué te vas…”

Texto publicado em: http://www.clubedapoltrona.com.br/2018/11/16/descubra-um-classico-cria-cuervos-1976/

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